quarta-feira, 29 de maio de 2013

Lawrence da Arábia (1962)

Sherif Ali (Omar Sharif) e Lawrence (Peter O' Toole), protagonistas de uma das maiores obras-primas do cinema
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T.O.: Lawrence of ArabiaReal.: David Lean. Int.: Peter O' Toole, Alec Guinness e Omar Sharif. Origem: Grã-Bretanha/EUA, 1962.

Sinopse: Em 1916, em plena 1ª Guerra Mundial, T. E. Lawrence, um audacioso oficial do Exército Britânico, é encarregue pelo governo do seu país de uma missão quase impossível: unificar as tribos árabes e levá-las a combater o exército turco, aliado do exército alemão. 

Comemoraram-se, no ano passado, 50 anos desde que Lawrence da Arábia se estreou nos cinemas. E em boa hora a distribuidora Columbia Tristar Warner, em parceria com as sessões clássicas do El Corte Inglés em Lisboa e no Porto (UCI), trouxe de novo a possibilidade de devolver "a César o que é de César". Que é como quem diz, trazer de volta o cinema ao seu devido lugar, à grande tela. Não existe outro lugar onde a obra-prima superlativa de David Lean possa viver, além dos nossos corações. Volvido mais de meio século, o que se pode mais escrever sobre Lawrence da Arábia? À data vale a pena observar dois pontos: primeiro, provar (para uns novamente, para outros pela primeira vez) a magia divina de um filme tão singular, tão assombroso quanto notável hoje como no dia em que se estreou, sem esquecer, num segundo prisma, o facto de a sua reposição em cinema nos recordar o valor da sala escura, numa era ingrata de smartphones e tablets; é em sala que encontramos o lugar onde se desafiam horizontes, se vivem histórias únicas onde o impossível pode, simplesmente, acontecer sem igual - e sem rival. Ou seja, o regresso do colossal Lawrence tem o dom de nos transportar para a mente, tão audaciosa quanto sombria, de um herói maior que a vida, devoto a um império mas apaixonado por outros ares e culturas do mundo, em busca de uma identidade global sem querer perder a sua noção individual. O filme é, a par de muito poucos de toda a história da Sétima Arte, dos mais perfeitos e exímios exemplos da magistral arte cinematográfica. E o fantástico restauro em homenagem aos seus 50 anos são acima de tudo, uma  sentida homenagem ao próprio cinema. É já um dos grandes acontecimentos cinematográficos deste ano.

A reposição em sala possibilita, com um argumento de ferro, um elenco com actores de primeira água e um domínio de câmara, tão romanticamente livre quanto geometricamente coordenado, que possamos verdadeiramente compreender e absorver os efeitos, por exemplo, do brilhante uso de uma grande angular, da força da luminosidade, da noção exacta da montagem, da devida extensão temporal de um plano, do jogo entre os seus simbolismos e ainda o devido uso do som e do valor de uma poderosa banda sonora. E depois dos 216 minutos encontramo-nos absolutamente esmagados e a pedir por mais. E percebemos que nunca tínhamos visto nada assim (filme) naquele formato (em sala). Imperativo para todos.

Velocidade Furiosa 6 (2013)

Dom (Vin Diesel) e Brian (Paul Walker) voltam a juntar a equipa para uma nova missão.
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T.O.: Fast & Furious 6Real.: Justin Lin. Int.: Vin Diesel, Paul Walker e Michelle Rodriguez. Origem: EUA, 2013.

Sinopse: Desde o golpe no Rio, que rendeu 100 milhões de dólares, que o grupo de Dom e Brian se espalhou pelo globo. Mas a impossibilidade de voltarem a casa deixou-lhes uma vida incompleta. Entretanto, Hobbs tem perseguido, pelo mundo, uma organização de condutores mercenários, onde se encontra o antigo amor de Dom, a ressuscitada Letty. A única forma de os parar é vencê-los nas ruas, por isso Hobbs pede a Dom para reunir a sua equipa de elite em Londres. O pagamento? Perdão total.

A saga de Velocidade Furiosa é um daqueles casos cujo verdadeiro sucesso e graça brotaram num percurso inverso ao habitual. Ou seja, depois do êxito do primeiro filme (de 2001), o segundo e terceiro  não conseguiram recuperar a essência do original. No entanto, foi pela mão de Justin Lin, o realizador do terceiro filme, Ligação Tóquio, que tudo voltou a fazer sentido: Lin percebeu que tinha de "matar" o lado tuning e fazer crescer as potencialidades de um filme de acção "à séria". Assim nasceu um novo modelo, mas com as peças de origem, tagline e imagem de marca do que se tornou o quarto filme: 'Velozes e Furiosos' voltou a juntar Diesel e Walker, protagonistas que não se viam juntos desde o filme original. E assim arrancou, à quarta incursão, o verdadeiro sucesso de uma fórmula; a ela se juntaram outros ingredientes determinantes, como a consequente presença de Dwayne Johnson e um grupo de sólidos secundários (de Ludacris a Gal Gadot). De seguida veio Velocidade Furiosa 5, e agora chega-nos o 6. E não existem truques na manga: é um blockbuster de puro sangue, que sabe reinventar e trilhar, sem grande esforço, uma estrada perfeita com atalhos, vias rápidas, faixas em contra-mão e muito óleo no alcatrão devidamente combinados para uma narrativa que encaixa, na perfeição, os pedidos do público: cenas de acção bestiais, adrenalina constante, química divertida/sólida entre os personagens, que já se tornaram "do coração" e, a finalizar, uma história com a qual nos continuamos a identificar, tão deliciosamente pautada entre os dois lados da lei. É o que é, sem mentiras ou armadilhas. E isso vale ouro, no meio de tanto lixo presunçoso que se vende hoje como cinema de entretenimento.

Em conclusão, a saga continua a evoluir com estilo e Velocidade Furiosa 6 é mais um comprovativo disso mesmo, ao continuar a conquistar os fãs originais da série sem descurar potenciais novos seguidores: há vários destinos pelo mundo, vilões à altura, uma equipa com graça e talento ao volante. E assim se serve um bom espectáculo de cinema de acção.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

A Essência do Amor (2013)

Olga Kurylenko, o sol das mais recentes paisagens emocionais de Terrence Malick
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T.O.: To The WonderReal.: Terrence Malick. Int.: Ben Affleck, Olga Kurylenko e Javier Bardem. Origem: EUA, 2012.

Sinopse: Neil e Marina conheceram-se em Paris, onde viveram uma grande história de amor. Dois anos depois, nos EUA, a paixão esmoreceu e a relação parece ter perdido o sentido. Marina procura encontrar apoio em Quintana - um padre católico perdido na sua relação com Deus - e acaba por decidir partir na companhia da sua filha de 10 anos. Neil procura conforto em Jane, uma paixão de juventude com um triste passado. Porém, apesar da relação evoluir, ele sente-se dividido entre este novo amor e o que perdeu.

Pensar que Malick perdeu o fôlego é como que viver uma súbita sensação de falta de ar ou tristeza. Como pode um realizador tão determinante e singular, que já nos ofereceu, na sua (curta) carreira, um leque de obras-primas supremas, ter um lapso a sério? Bem sabemos que é apenas humano, mas levantou dúvidas por tantas vezes nos elevar ao céu e nos deixar a pairar por lá com o seu cinema. Mas não restam incertezas: dois anos volvidos do magistral A Árvore da Vida, Malick espalha-se no seu mais recente filme, A Essência do Amor. Nele, o realizador capta os seus belíssimos planos em grande angular, de uma composição riquíssima, mas cansa - como nunca antes - o espectador, perdendo a noção do seu uso, do seu tempo certo e da leitura que cada um revela. Há muito novelo, mas nenhuma agulha para coser. A história do argumento por si escrito não vive nem em harmonia, equilíbrio ou ritmo, com as imagens montadas sobre a voz on/off. Ou seja, enfrentamos o impensável: Malick a perder controlo sobre a sua mestria - a sábia, poética e divina composição de palavras, imagem e som. Ben Affleck é um monumento de inexpressividade, o mais pobre e frio personagem que Malick já filmou, sem química com Olga Kurylenko (em oposição, o melhor do filme, está radiante), perdida entre a estética repetitiva dos constantes planos do realizador, que se sucedem em massa sem qualquer força de raccord ou tema. McAdams entra cinco minutos, brilha mas pouco e, nisto, some-se de vez. Bardem arrasta-se à procura de algo, se não fosse padre não saberíamos dizer do quê. E Malick ainda se perde com línguas, entre o francês de Kurylenko, o inglês de Affleck e o espanhol de Bardem, sem esquecer uma pitada de italiano de uma mulher oriunda de nenhures que se junta a Kurylenko, a certa altura. Sobram vultos, ideias de personagens, olhos cansados e (muitas) emoções por viver - pelos protagonistas da história e, consequentemente, por nós, espectadores.

Em suma, Malick perdeu-se de amores pelo seu umbigo: completou um projecto que é (demasiado) livre nas suas formas e por isso pobre no seu significado final. A sensação é a de que esta poderia ser uma primeira longa de um qualquer estudante de cinema, apaixonado pelo universo do realizador: aí estaríamos perante um esforço de valor. E é por isso que não consigo deixar de sentir algum carinho pelo resultado final, ao querer acreditar que Malick simplesmente fez "este" só para si. É que para nós é mais que certo que ficou, na sala de montagem, um grande filme por fazer.

terça-feira, 30 de abril de 2013

Transe (2013)

McAvoy, Dawson e Cassel: um triângulo hipnótico
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T.O.: TranceReal.: Danny Boyle. Int.: James McAvoy, Rosario Dawson e Vincent Cassel. Origem: Grã-Bretanha, 2013.

Sinopse: Simon, um leiloeiro de arte, junta-se a um gangue para roubar um valioso quadro, mas depois de sofrer uma pancada na cabeça durante o assalto, acorda e descobre que não tem memória sobre onde escondeu a pintura. Quando a tortura não resulta, o líder do gangue Franck contrata a hipnoterapeuta Elizabeth Lamb para explorar os recantos mais sombrios da mente de Simon. E o inesperado acontece. 

Tente imaginar o que seria se juntássemos os imaginários de Mulher Fatal, de De Palma, com o de A Origem, de Nolan. Num primeiro registo minimalista, é assim que podemos tentar descrever Trance, o novo filme do talentoso contador de histórias britânico, Danny Boyle. O realizador estreia agora nas salas um soberbo thriller psicológico, que nos faz perder a cabeça com a sua estética deliciosamente alucinada onde um argumento "roubado" de um telefilme de 2001 se move, em modo de espiral. O triângulo de actores McAvoy, Dawson e Cassel faz andar a imensa roda gigante em que a acção se centra, e todos funcionam num caos temerosamente harmonioso, que se despedaça à medida que o filme se desenvolve: por mais que tentemos agarrar os personagens nas mãos para poder juntar devidamente as peças, Boyle encarrega-se que eles nos fujam descaradamente por entre os dedos. O filme desafia-nos desde o primeiro acto, que é fabuloso e onde Boyle filma a fazer sincera inveja a Fincher, e num ápice somos atirados para um labiríntico exercício de estilo, que junta os ingredientes perfeitos do heist e do noir (a memória é um dos núcleos dramáticos do underground e noir dos anos 40/50, e curiosamente existe uma misteriosa mulher  com cartas para dar), com toques de humor ácido e violência recheada de estilo (Cassel parece saído de um Melville); tudo captado por uma câmara que dirige a acção física dos lugares e íntima dos corpos com poder e sabedoria.

Feitas as contas, Transe não é algo novo, mas não deixa de o parecer: a sensação que ele opera no espectador é de frescura, de conquista. Troca-nos as voltas, goza-nos e tem gozo nisso. É sexy, dirty e nasty, recheado de um punch incrível. Dawson vai permanecer, desde já, como uma das mais enigmáticas femmes fatales que vimos em muitos, muitos anos: a sua personagem chama-se "Lamb", mas ela faz frente aos "Wolves" que habitam na história.

Regra de Silêncio (2013)

Robert Redford, uma figura nuclear do cinema contemporâneo
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T.O.: The Company You Keep. Real.: Robert Redford. Int.: Robert Redford, Susan Sarandon, Shia La Beouf. Origem: EUA, 2012.

Sinopse: A vida de Jim Grant, advogado civil e pai solteiro, nos tranquilos subúrbios de Albany, em Nova Iorque, sofre uma reviravolta radical quando se torna alvo de investigação de um jovem e ambicioso jornalista que descobre um segredo do passado. 

O mais recente filme de Robert Redford pertence-lhe sob forma da realização e da interpretação, mas é sobretudo na base da herança que o seu domínio oferece maior relevo. Neste seu Regra de Silêncio, Redford recorda que permanece uma prova viva de um cinema singular, que sabe beber as influências da produção artística dos anos 70, década de uma enorme revolução estética e narrativa na Sétima Arte, e que mantém hoje uma linguagem actual e, sobretudo, vital: aqui o cinema faz-se de actores e de conflitos, sem falsos artifícios. Ao revisitar as memórias do activismo contra a guerra do Vietname, altura onde a paranóia política e o sistema militar eram alvo de crítica popular, o actor/realizador leva-nos ao mundo de filmes nucleares como Os Três Dias do Condor e Os Homens do Presidente - onde foi protagonista, em ambos os casos - e capta na perfeição a dura tarefa de uma América à procura de sarar as suas feridas, sem soluções à vista. Na fissura de cada uma delas, encontram-se dois lados: uma geração mais velha (além de Redford temos Julie Christie e Susan Sarandon) e, do outro lado, uma mais jovem (LaBeouf e Brit Marling). A ambas junta-se uma futura, representada na menina de Redford, com quem encerra o filme num soberbo e silencioso plano final.

Em suma, é um filme a não perder de vista, que não só nos recorda a importância de uma tradição artística (e nos demonstra que está longe de se encontrar esgotada a nível dramático) na mesma medida que é construído com cabeça, tronco e membros, com actores de primeira água, um argumento forte e uma realização segura da sua capacidade e mestria de encenação temporal e emocional.